quinta-feira, 26 de março de 2020

 

Amor em tempos de coronavírus

ou de como o Gabriel, o Garcia e o Marques* não resistirão a uns meros cem dias de solidão auto-imposta.


Na ausência de eventos desportivos com que entremear os períodos de teletrabalho, é difícil impedir que o pensamento se disperse por questões aleatórias. E isto mesmo sem o contributo das rotineiras deslocações casa-escritório-casa, esses quilómetros tão cheios de enleio mental de curto prazo, sempre abruptamente encerrados e esquecidos com o bater da porta do automóvel.
Dei por mim a pensar, mergulhado numa sensação efervescente de fritura cerebral proporcionada por um turno algo mais extenso, num jovem tratante (não tão jovem assim) de minha conhecença que, estando a descrever uma determinada pessoa, inquiriu seus interlocutores: «Sabeis o que é um esteio? Assim daqueles mesmo grandes? Pronto, é assim que ela é!». Ela, obviamente, a respetiva enamorada, entretanto desposada. Não é uma coisa bonita, o amor?
Quem feio ama, bonito lhe parece, já lá diz o povo, na sua imensa… digamos, na sua imensa. Quem diz feio, diz esteio, diz tronco, diz cepo, diz pés-de-tijolo, acrescento eu. Não causa espanto, assim sendo, que tantos amem os ditos esteios, troncos, cepos, pés-de-tijolo que pululam (não tanto por estes tempos, mas haverão, enfim, de repulular) pelos relvados deste mundo. Resta, porém, saber se esse amor é verdadeiramente cego, ou se é um amor consciente, como o do espontâneo carroceiro de que falei.
Porque há uma imensidão a separar os que amam cepos sem o saberem dos que amam cepos com plena consciência do facto; sensivelmente a mesma que separa aquele refugiado sob o soalho que espirra inadvertidamente quando a patrulha nazi está a vasculhar a casa e o septuagenário que hoje sai de casa para comprar raspadinhas e jogar ao dominó enquanto tosse de boca aberta e se ri com desdém do histerismo colectivo.
Quanto ao futebol, perdoe-se os primeiros, porque não sabem o que amam, mas reneguemo-los se, instruídos da verdade, permanecerem no erro, tal como renegamos os que já aí se encontram. Mas, sobretudo, reneguemos os que, falaciosamente, pretendem associar a nomeação de cepos, esteios e quejandos a uma qualquer perspectiva xenófoba, racista ou, de qualquer outro modo, preconceituosa.
Que epíteto se atribui a um médico-cirurgião que, ao invés de curar, piora as maleitas dos seus pacientes? Talvez carniceiro. Ou que será um gestor incapaz de controlar as suas contas? Talvez um nabo. Ou até mesmo um artista incapaz de moldar uma cara que se assemelhe a uma cara? Talvez um trolha. O que somos nós, aqui? Sem dúvida, trolhas. E, porém, assim chamamos a cada uma dessas pessoas sem que tenhamos de saber, dos seus mesteres, mais do que aquilo que se vê ao largo. Apenas e só porque se torna evidente o quão diversas são as suas qualidades em comparação com os demais colegas de profissão.
Por que razão, então, hão-de estar os futebolistas isentos desta forma de tratar? Não será, isso sim, um preconceito infantilizante? Um qualquer tipo de chuteiras e equipamento do FCP não é um cepo por ser branco, preto, castanho, amarelo ou cor-de-rosa às riscas. É cepo porque, não obstante ser muito melhor no que faz do que os que aqui se sentam no andaime para mamar umas minis e expelir uns gases, é evidentemente incapaz de desempenhar a sua função de forma proficiente. No fundo, pode ser chamado de cepo porque o ser-se cepo não olha a raças, credos ou géneros, olha apenas a uma bola que foge dos pés como (dizem) o diabo foge da cruz.
Tal como as palavras me começam a escapar da mente, substituídas por esta mágica sonolência a que, finalmente, me abandono, como um esteio. Sabeis o que é um esteio? Assim daqueles mesmo grandes? Pronto, é assim que aqui fico, até amanhã, em que outros esteios se erguerão.


* Gabriel, Garcia e Marques são, obviamente, os três neurónios que preenchem o meio-hipocampo no esquema táctico-sináptico deste que aqui divaga.

Partilha noutros estaleiros:

0 martelanços:

Enviar um comentário