sexta-feira, 26 de outubro de 2018

 

O IMPÉRIO DO MALI OU OS 11 METROS EM FÚRIA

As picaretas decidiram roubar a luva do grande Artur Semedo e chantagear a pobre alma em troca de um texto.

Para texto feito sob coação, está espectacular:


Por motivos que decidi associar, por iniciativa própria e sem qualquer fundamento científico, a uma queda numa fase bem precoce da minha existência, vivo atormentado por vertigens. 
Abomino alturas, em geral, varandas envidraçadas e escadas em caracol, em particular; mas também montanhas-russas e os seus ziguezagues em ambos eixos x e y, ou qualquer outro engenho similar a que alguns chamam divertimento. E, porém, não temo viagens de avião, algo que contribui, em certa medida, para a minha actual situação de expatriado. 
Não que fosse demasiado penoso aqui chegar sem apanhar um avião, ainda para mais numa Europa agora [por enquanto?] «sem fronteiras», mas a verdade é que, amiúde, o percurso aéreo e quase recto de um avião é mesmo a melhor forma de se chegar a algum lado. Falando em linhas, talvez não tenham conhecimento, tal como eu não tinha até há pouco tempo, da chamada Teoria da Curva em U. Não, esta teoria não tenta explicar como a circulação contínua por fora do bloco e de um lado para o outro permite transformar a construção ofensiva numa sequência inócua de transferências do esférico até perder o jogo num contra-ataque adversário, tal como a economia não se propõe a explicar de que modo o dinheiro circula de mão em mão até desaparecer do mapa. O que se pretende com esta teoria é descrever o efeito de montanha-russa vivido por um expatriado no seu processo de adaptação cultural. 

Teoricamente, o expatriado (chamemos-lhe «eu») passaria por uma fase inicial de deslumbramento, rapidamente seguida de um choque, causado pelo mergulho mais profundo na nova cultura de acolhimento, e subsequentes fases de recuperação e ajustamento. Posteriormente, a teoria sofreu um impulso decisivo, sendo-lhe adicionado um segundo ciclo, agora já não imediato ao expatriamento, mas ao repatriamento. 
Quis o destino, ou a evolução dos alfabetos, que, pelo rincão luso, as curvas suaves de um duplo –u se transformassem em arestas vivas de um duplo –v, pelo que temos então um percurso psicológico em W, em vez de UU. Deste acrescento se segue que, quando estes ulisses mui pouco heróicos, ainda que quiçá algo engenhosos, regressam, de vez, às suas ítacas natais, se vêem cingidos por uma cultura e uma sociedade que já não são as suas: nem aquelas a que se acostumaram enquanto expatriados, nem aquelas de que partiram inicialmente. Tornam-se, assim, estranhos em terras que deveriam ser conhecidas. Não admira, portanto, que cerca de dois meses passados desde o último jogo do FCP visionado, algo me parecesse afligir no âmago. Recostei-me no sofá, mas o problema não era estar sentado. Troquei de lado, mas também não era do ângulo de visão. Dez ou quinze minutos passaram até que, finalmente, me apercebesse da razão do meu desconforto mental: POR QUE RAIO ESTÁ O ÓLIVER A AQUECER DENTRO DO CAMPO COM O JOGO A DECORRER?

Mas não era sobre isto que queria aqui falar.

Toda a gente sabe as perguntas que se fazem quando alguém avança para a marca de pontapé de grande penalidade, essa sanção tão bela que pune equanimemente uma infração cometida sobre quem está isolado de frente para a baliza e só com o guarda-redes pela frente e um agarrão sobre um tosco que tente dominar uma bola com a canela junto à linha de fundo de costas para a baliza:

«Vai rematar em força ou em jeito?»; «… rasteiro, a meia altura ou junto à trave?» «… para a esquerda ou para a direita?». Toda a gente sabe, igualmente, que, se o marcador do dito livre directo vestir de azul e branco, a verdadeira pergunta é: «Será que este vai conseguir marcar?» Ontem, porém, talvez tenha surgido o antídoto para a maldição dos penalties, encapsulado num invólucro que entende naturalmente cada toque na bola como o espoletar de um processo mais aleatório do que a atribuição de processos a juízes — Marega. 
Tudo na marcação de uma grande penalidade parece enquadrar-se o melhor possível com as competências para o jogo demonstradas pelo maliano, alçado a novo herói da arquibancada e que me faz lembrar da magnum opus inacabada de Musil: não precisa de se virar para a baliza, porque já começa nesse sentido; não tem de ultrapassar defesas com fintas, porque não os há; não necessita de pensar em dominar a bola, porque a mesma está parada; nem tem de se preocupar com o segundo toque, porque só lhe é permitido um…

Aqueles cerca de seiscentos e sessenta e cinco metros quadrados de solidão, onde apenas pontificam o árbitro e dois adversários, a bola e o guarda-redes, são, para Marega, a possibilidade de ligar o pé às redes numa linha recta mais perfeita que os corriqueiros arremessos originados metros antes da linha de meio-campo, estilo de jogo que, em vez de apostar nas entrelinhas, valoriza as sobrelinhas aéreas. Quando ele respira fundo e começa a correr para a marca dos onze metros, subsiste apenas uma pergunta, que anula todas as outras e resume aquilo que todos parecem adorar no futebol:

«Será que ele vai acertar na bola?»
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