quarta-feira, 31 de outubro de 2018

 

O DESASTRE DA TANGENTE - a falhar o cerco ao tema desde 1982

Após libertarmos o gato do Artur Semedo, decidimos raptar o cão. Tivemos medo que ele viesse para cima das picareta em modo John Wick, mas ainda não foi desta. Queiram ler e desfrutar.

 

Encostei-me para trás na cadeira de escritório e fechei os olhos, sentindo-me ali, em cima da cadeira, como um livro que alguém do departamento sueco aí deixasse. Entreabri as pálpebras e mirei o tecto, onde uma mancha ténue parecia alastrar-se e retrair-se no mesmo compasso da minha respiração. Exalei mais profundamente e, dada a ausência de um corta-unhas, decidi enganar o tédio olhando o dia cinzento pela janela.
Uma grande avenida onde qualquer Fittipaldi de trazer por casa adoraria acelerar em fúria espraia-se a uma vintena de metros, esparsamente tocada. Há poucas semanas, instalaram um sistema de controlo de velocidade média nessa via, pelo que hordas de automobilistas preferem desviar por um outro itinerário, agora quase sempre entupido ao final do dia. Para não terem de controlar os instintos vertiginosos, preferem, portanto, a modorra do pára-arranca. Um pouco como preconizado no lema inscrito nas notas de dólar ou no emblema dos encarnados (porque dizer vermelho não é apropriado para gente temente), de muitos se faz uma só massa de faróis, indistinta e ilógica como só as boas massas sabem ser.
Por falar em massa indistinta, talvez algum leitor de orgulhosa juba me saiba explicar o que se pretende com «Esforço, Dedicação, Devoção e Glória». Assim de repente, aqueles três primeiros vocábulos parecem remeter aproximadamente para a mesma coisa, como uma versão mais culta do muito trabalho, muito trabalho, muito trabalho. Tentei obter mais informações lendo a pequena glosa do anterior presidente, para sempre imortalizada numa peanha junto ao estádio, mas, com o vaivém de emoções tão típico por aquelas bandas, temo que possa já não ser essa a interpretação canónica.
Ainda assim, continuará a ser melhor que o lema oficial do FCP que, acima de tudo, peca por inexistente, mal-grado várias tentativas mais ou menos sonantes, das quais a última será a premissa de que o clube se encontra a vencer desde 1893, ou seja, desde o segundo ano de presidência de Pinto da Costa.
Se me fosse dada opção de escolha, selecionaria como lema para o meu clube… não! Selecionaria como lema para todo o futebol uma frase que me confidenciou uma vez o meu tio ser um mote algures entre o oficioso e o jocoso dentro da Guarda Nacional República: «A cavalaria da GNR nunca recua. Dá meia volta e avança!»
Quão belo seria um mundo em que o adepto da bola entendesse que dar um passo atrás é, não raras vezes, a melhor forma de chegar lá em frente: «O bom apoio nunca recua. Devolve a quem está de frente e avança!» Quão bela seria a bancada que não assobiasse o terceiro passe que não indiciasse verticalidade: «A boa construção nunca recua. Desloca o adversário e avança!» Quão belo seria o comentador que não menosprezasse o avançado que não tenta sempre virar-se para a baliza adversária mal recebe a bola, seja em que condições for: «O melhor ataque nunca recua. Contemporiza e avança!» Quão bela seria a área demarcada se o treinador do meu clube não preferisse a vertigem dos três passes às voltinhas assassinas de um minorca. Quão belo seria eu nunca ter deixado de ser um adepto, um comentador, uma bancada, um mundo como esses que negam tudo isso e pretendem apenas um rasgo de esforço, de dedicação, de devoção, pela vã glória de ganhar!
Ah, todo eu anseio por esse momento, como por outros análogos em que não tinha consciência nenhuma e contemplava todo o vácuo da velocidade sem inteligência para o compreender.
E havia correr e saltar e a intensidade, ó Artur, vamos ao café, perguntou-me o Júlio, que não é o Esteves, que está de férias, mas que bem podia trabalhar numa tabacaria. E eu fui.
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1 comentário:

  1. ok, sobre futebol, gosto de ler os textos do Valdano, ouvir/ler as entrevistas do Guardiola. Os textos dos picaretas são uma, muito, bem-vinda adição. Obrigado.

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